quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O beija-flor e a flor, um amor além das espécies


A loucura pairava no ar, mas era uma loucura gostosa, contagiante, chegou o carnaval dos humanos. Loucura essa que contagiou homens e bichos sem exceção nenhuma. Em meio dessa loucura toda, um beija-flor decidiu aproveitar a vida e tentar se aventurar tentando entender os sentimentos dos humanos.
E ao invés de procurar uma flor, sugar seu néctar e seguir sua vida que quase sempre era solitária resolveu parar para observar aquele outro ser tão lindo que lhe garantia sobrevivência.
Estava lá uma Campânula quase morrendo em seu pequeno vaso. Era assim que o beija-flor enxergava o vaso em que ela vivia, ela era grande e bonita pra viver em algo tão pequeno e tão longe das outras. Fez um vôo de reconhecimento e com toda delicadeza de sua espécie pousou no canto do vaso.
- Oi, posso ficar aqui um pouco com você?
- Oi. Estranho me perguntar isso, faça como os outros pegue do meu néctar e siga seu rumo. Não costumo ter pássaros ou outros bichos aqui comigo.
- Desculpa, não quero lhe atrapalhar. Estou apenas querendo conversar, se quiser posso ir embora.
- Sim, mas não sei o que podemos conversar, sou apenas uma flor num vaso.
O beija-flor com toda sua rapidez natural saiu do vaso e desapareceu céu afora e mais rápido ainda retornou. Trazia em seu pequeno bico o máximo de água que conseguirá carregar e sem dó jogou sobre aquela linda flor no vaso.
-Deixa disso pássaro, não é um pouco de água que irá me salvar. Não percebe que já não sou mais atraente para aqueles que me colocaram nesse vaso.
- Eu só quis lhe ajudar, não sabia como e achei que isso era o melhor a fazer.
- Agradeço sua gentileza e confesso que fico emocionada em saber que ainda posso chamar um pouco de atenção.
- Como és boba, tens a cor mais linda que eu já vi, olha que já visitei muitas flores nessa minha curta vida. Seu cheiro ainda domina o ambiente e suas pequenas pétalas acham muita atenção. Como a chamam?
- Campânula era do que me chamavam logo que me colocaram aqui, viam me visitar todos os dias, me davam água, cheiravam-me, conversavam, riam, hoje nem ao mesmo passam por mim.
- Esses humanos são estranhos mesmo. Já passei por muitas casas e muitas vezes ouvi-os falando sobre coisas e sentimentos, que não entendo, nunca parei para entendê-los.
- Eles falam muito, mas não os vejo fazendo muito. Já ouvi falar sobre esse tal de amor, algo que mais me chamou atenção, dizem que é bom e dura a vida toda, eu fui presente de amor, pelo menos era o que dizia o cartão que colocaram junto a mim quando me entregaram a essa casa.
-Amor, isso é um objeto dos humanos?
- Pelo pouco que entendo acho que não, seria mais um sentimento. Ouvi a humana que me pegou nas mãos ler naquele cartão os seguintes dizeres: Nosso amor é como uma flor que precisa ser regada todos os dias, que alegra nossas vidas e que com um perfume somente nosso faz nossa vida fazer sentido!
- Estranho muito estranho. Desculpe mas tenho que ir, as horas passam e logo a noite chega.
-Tens medo da noite?
- Não tenho medo da noite e sim do que vem junto com ela. Apesar de ser corajoso sou pequeno e nem sempre consigo lutar com tudo, e não sei o que acontece esses dias com os humanos, eles andam tão agitados, gritando, pulando, tenho medo de que algum deles me acerte. Prometo voltar amanhã com mais água. Posso?
- Verdade, esses humanos andam muito estranhos. Claro que pode voltar, não sei se ainda estarei viva, espero te ver amanhã pequeno pássaro.
O pequeno beija-flor não sabia o que estava sentindo, mas estava adorando tudo aquilo. Bateu as asas o mais rápido que pode, fez alguns vôos ao redor do vaso e antes de ir gritou: Até mais linda Campânula ainda verei sua verdadeira cor. Ela riu e com muito esforço balançou uma de suas folhas.
Passou os dias e ele cumpriu com sua palavra, voltava todas as tardes com um pouco de água, ficava algumas horas conversando com a flor, os dois ficavam observando os humanos da casa que pareciam loucos pulando ao som de algo que não lhes faziam sentido. Eis que uma tarde quando retornou ao vaso sentiu que algo estava estranho, bateu as asas várias vezes, mas a flor não lhe respondia. Tentou, tentou, já não tinha forças pra bater as asas, algo tomou conta dele, não entendia o que estava sentindo, só queria que parasse e que ela voltasse a responder. Vôo em volta da casa, os humanos ainda estavam lá, dançavam alegres, aquele som alto, com todas as forças que ainda tinha bateu na janela algumas vezes, sem êxito. Voltou ao vaso e ali permaneceu olhando para a linda flor parada e sem vida. A noite chegou e lutando muito tinha que voltar ao seu ninho, não queria ir, queria ficar ali olhando pra ela, mas já era hora de parti. Fez um último vôo, com seu pequeno bico acariciou uma de suas pétalas, pegou um pouco de néctar q ainda restava e seguiu noite afora.
Os humanos da casa realmente estavam numa loucura contínua, dançavam feitos loucos, mas um deles se encantou com o beija-flor e sem que o mesmo percebesse ficou observando em que flor ele pousou e resolveu dar uma pausa na loucura, trocou a flor de vaso, regou-a e colocou na janela da cozinha onde batia sol, voltou a dançar e cantar ao lado dos outros humanos.
Na tarde seguinte o beija-flor estava em seu ninho totalmente sem vontade de voar, comer, não queria viver, não sabia o que fazer com a tarde que chegará. Saiu do ninho e vôo até a árvore ao lado tentar pensar em algo. Na mesma árvore se encontrava outro pássaro que vendo a tristeza do pequeno beija-flor foi conversar com ele.
- Oi pequeno o que lhe traz tanta tristeza?
- Oi pássaro. Tristeza? O que é isso?
- Tristeza é o nome que os humanos dão quando sentimos falta de algo, perdemos algo, quando tudo está diferente e nosso peito dói. Entende pequeno?
- Bom eu não sabia o nome disso, mas meu peito dói, sinto falta de algo aqui dentro não sei dizer o que é. Apenas dói
- Você perdeu seu amor, seus pais, filhos?
- Não tenho pais, filhos também não. O que é amor pássaro?
- Amor é o nome que os humanos dão quando não podemos viver sem alguém, não pensamos em nada mais que esse alguém, amor é quando seu peito se enche de alegria e quando dói é porque esse alguém lhe fez algo bom. Amor é acordar todos os dias querendo ser a vida desse alguém. Entendeu pequeno?
- Nossa. Pássaro como sabes tudo isso?
- Eu vivi muito tempo com os humanos, um deles me amou, me alimentou, então eu descobri o amor e a tristeza também. O humano que me amou partiu não sei para onde, só ouvi dizer os outros humanos que ele não iria voltar, que já estava descansando em outro lugar bem longe daqui, uns dias depois me soltaram nessa árvore e aqui estou há um tempo já.
- Então é assim que os humanos vivem? Amor, tristeza e partida?
- Não exatamente. Eles vivem procurando o amor, evitando a tristeza e no fim sempre partem. É a lei da vida dos humanos.
- Minha flor deve ter aprendido isso com os humanos então.
-Sua flor? Como assim pequeno?
- Agora que o senhor me falou tudo isso eu cheguei a uma conclusão. Eu não sou humano, mas achei o amor em uma flor, ela partiu e me deixou a tristeza e essa faz meu peito doer muito.
- Pequenos tu és um pássaro como foi amar uma flor? Elas nos servem como alimentos e não como companheiras para a vida.
- Ela é diferente das outras meu senhor. Nunca a vi como uma flor que me fornecia néctar, eu amava sentar ao seu lado sentindo seu perfume doce, quando eu dizia algo engraçado ela balançava todas as pétalas derrubando seu pólen, e quando se envergonhava tremia as folhas, ela me ouvia, ela me entendia, riamos juntos da loucura dos humanos da casa onde ficava.
-Pequeno você é louco assim como eles. Ninguém lhe disse que não se pode amar além de sua espécie? Esse amor nunca iria ser possível, ainda bem que ela partiu.
- Não diga isso senhor, você não a conhecia. Ela não me deixou porque quis, os humanos são egoístas demais para amar além de sua espécie e a esqueceu num canto da casa sozinha, eu apenas a fiz companhia e não sei explicar como o amor surgiu.
- Pare com isso pequeno ou vai se machucar mais. Ache alguém de sua espécie e assim descobrirá o que é o amor.
- Se o amor é o que o senhor me disse não vejo nada errado em senti-lo com outra espécie. Eu a amo e vou lhe dizer isso ainda hoje. Obrigado por me ouvir e me ensinar sobre os sentimentos.
- Tenho dó de você pequeno, mas se é isso que queres vá em frente. Espero que isso não seja mais uma loucura de carnaval.
- Carnaval senhor?
- Carnaval é o nome que os humanos dão para a festa que eles fazem uma vez por ano, baseada em músicas loucas, onde dançam e cantam sem parar, pulam muito, onde todos se beijam, dizem que se amam, uma loucura total, e quando o carnaval acaba ninguém nem lembra o nome de quem jurou amar naqueles dias de loucura. Já ouvi um humano dizer que amor de carnaval não chega ao natal.
- Deve ser por isso que os donos da casa estavam loucos, deve ser essa loucura no ar que me fez pousar naquele vaso, deve ser sim loucura minha amar uma flor, mas não sou humano, acho que se ela não tivesse partido eu amaria até o natal e muito mais.
Bateu as asas rapidamente e voltou até a casa. Com uma mistura de tristeza e alegria, algo que havia acabado de descobrir o que era, sentou no mesmo vaso, só que desta vez ela já não estava lá. O vaso vazio parecia o seu peito agora. Vôo sobre o vaso algumas vezes e voltou para o seu ninho, fez isso por alguns dias. Certa noite ouviu vozes, muita música, fogos, muita bagunça perto de seu ninho, não saiu de lá, não tinha certeza do que estava acontecendo, apenas ficou ali escutando. Diziam os humanos com tristeza na voz que era a última noite de carnaval, que a loucura estava no fim. Ouvir aquilo fez pensar em algo, seu peito foi invadido por uma dor, suas asas pediam pra sair dali, mas já era noite pensava ele, então resolveu obedecer todos aqueles sentimentos e bateu asas até a casa de sua amada.
O vaso já não estava no lugar. Já se preparava para voltar ao ninho quando um vento trouxe um cheiro que ele conhecia bem, um riso que era inconfundível. É ela gritava ele, é ela, vôo em torno da casa, quando já desistia avistou um vaso grande em uma janela, sim era ela. Pousou rapidamente no vaso e com todos os sentimentos que havia aprendido tocou o bico em uma de suas pétalas. Ela tremeu uma de suas folhas e com um pouco de vergonha balançou a pétala retribuindo o carinho.
- Pequeninho, achei que havia me esquecido. Que bom vê- lo novamente
- Achei que você havia partido e me deixado linda campânula.
- Eu o deixei por algumas horas, não tinha forças pra lhe responder, mas vi todo seu esforço em me ajudar, vi todo seu desespero
- Deixemos tudo isso pra lá. Conte-me como voltaste a viver.
Assim passaram as horas, conversando como sempre faziam, tinham muito que falar um ao outro. No meio da conversa o beija-flor a cheirou diferente e como os olhos de um jeito que ela nunca viu.
- Que foi meu pequeno, porque me olhas assim?
-Seu cheiro está diferente, algo está diferente em você.
- Claro que está, estou mais viva, minha cor voltou, meu cheiro voltou, essa sou eu mais viva. Não gostou?
- Não é isso. Esse não é seu cheiro verdadeiro, ainda sinto seu cheiro, mas tem outro que está mais forte que o seu.
- Você sabe quantos já vieram alimentar-se do meu néctar enquanto esteve fora? Muitos, pequenino.
- Deve ser isso então, mas não gostei. Você é minha flor e assim tem que ser.
- Não pode ficar aqui no meu vaso todo tempo, esqueceu que você é apenas um pequeno pássaro, a noite chega e com ela os mais fortes.
- Por você enfrento todos, não tenho medo quando estou com você.
- O que está dizendo é loucura, não pode arriscar sua vida por mim. Eu sou uma flor e você um pássaro.
- Eu sou um pássaro que ama uma flor e não tenho medo de morrer por esse amor.
- O que um pequeno pássaro entende de amor? A loucura dos donos da casa contagiou você, foi?
- Eu não entendo de amor, apenas sinto, você não sente o mesmo?
- Eu sinto algo que não sei o que é, só sei que não gosto quando você não está comigo.
- Um velho pássaro me ensinou o nome que os humanos dão para as coisas e isso que você sente é amor também.
Com calma explicou tudo o que o velho pássaro o havia ensinado e então chegaram ao um acordo
- Então essa loucura toda que os humanos fizeram esses dias foi por causa do carnaval?
- Bom alguns dizem que sim, mas eu cheguei a conclusão que eles procuram amor no meio dessa loucura toda. A busca pelo amor é o que faz a vida deles e a nossa seguir em frente.
- Eu gostei disso, então eu AMO VOCÊ PEQUENINO e não ligo se você é um pássaro e eu uma flor. Agora volte para seu ninho, não quero que nada aconteça a você. Prometo estar aqui amanhã.
- Não irei embora, vou trabalhar a noite inteira e construirei meu ninho logo ali naquela árvore, assim poderei te ver todas as noites e vir te ver logo no amanhecer, passar as tardes com você.
- Então quer dizer que nosso amor não é coisa da loucura do carnaval?
- Eu não sou humano, sei viver a loucura o ano todo e não me importo se você é uma flor e eu um beija-flor.
- Eu quero beija-flor, acredite. Mas...
-Mas o que? Somos livres para escolher quem amar.
-Uma vez começado, não terá mais volta.
-Eu não quero voltar.
Ele trabalhou a noite toda até ter certeza que seu ninho ficava de frente a sua amada, um completava o outro, ele sendo um beija-flor e ela uma flor. A loucura dos homens é pensar que o amor tem que fazer sentido.